Indignidade Sucessória dos Condenados por Crimes de Violência Doméstica ou Maus Tratos


Foi chumbado, no passado dia 26 de outubro, o Projeto de Lei que previa uma alteração ao Código Civil, criando a indignidade sucessória dos condenados por crimes de violência doméstica ou maus tratos. Ora, atendendo à atualidade e à relevância do tema, importa fazer uma breve exposição e análise da questão.
É de conhecimento geral que a violência doméstica é crime. Aliás, pela sua gravidade, a denúncia pode partir de qualquer pessoa e não apenas da vítima, sendo assim denominado de crime público. Não obstante, é, de acordo com o Relatório de Segurança Interna, o “segundo crime com maior incidência na categoria dos crimes contra as pessoas”, havendo um significativo aumento de vítimas mortais nos últimos anos. Não menos grave é o crime de maus tratos, que se encontra igualmente legalmente tipificado, e com o qual lidamos mais frequentemente do  que gostaríamos de admitir.
É com base na particularidade desses crimes que surge este Projeto de Lei, que tem em atenção o risco e a fragilidade das vítimas, assim consideradas indivíduos mais vulneráveis, e que visa, acima de tudo, “não permitir o benefício do infrator, impedindo que o criminoso herde da pessoa contra quem cometeu o crime”.
Nessa medida – e para uma melhor compreensão –, releva agora fazer a distinção de dois institutos que geram incapacidade sucessória, isto é, que têm a capacidade de impedir que uma pessoa seja herdeira de outra: a deserdação (artigos 2166.º e 2167.º do Código Civil) e a indignidade (artigo 2034.º e seguintes do Código Civil).
No que à primeira diz respeito, convém realçar que, para haver lugar à deserdação de um herdeiro legitimário, é expressamente necessário que o autor da sucessão o declare, após a ocorrência de determinadas circunstâncias legalmente previstas, nomeadamente, ter sido o sucessível condenado por algum crime doloso cometido contra a pessoa, bens ou honra do autor da sucessão, ou do seu cônjuge, ou de algum descendente, ascendente, adotante ou adotado, desde que ao crime corresponda pena superior a seis meses de prisão. Por outro lado, a indignidade sucessória surge quando o herdeiro comete alguns tipos de crime, tais como, a título de exemplo, homicídio doloso ou a sua mera tentativa e denúncia caluniosa ou falso testemunho, sempre contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, descendente, ascendente, adotante ou adotado. Nestes casos, porém, não é necessária qualquer declaração expressa, bastando a condenação.
Como podemos verificar, não há lugar, nesta tipificação, à indignidade sucessória quando estamos perante um condenado por crimes de violência doméstica ou maus tratos. Muito embora a prática desses crimes constitua causa justificativa de incapacidade sucessória através da deserdação, a verdade é que, para tal, é sempre necessária uma declaração expressa do autor da sucessão. Assim, sendo o futuro autor da herança vítima de violência doméstica ou de maus tratos, terá, ainda assim, o direito de decidir se pretende que o condenado por tais crimes tenha ou não o direito de ser chamado à sucessão.
É nesta peculiar diferença que incide a referida proposta. Será que os crimes de violência doméstica ou de maus tratos devem anular a vontade do autor da sucessão? Será, por outro lado, que ao não os incluir no instituto da indignidade sucessória, o legislador está, de certo modo, a banalizá-los e a não ter em conta a fragilidade da vítima? Será, ainda, que limitar a escolha relativamente a bens jurídicos eminentemente pessoais colide com o consagrado na Constituição da República Portuguesa, nomeadamente tendo em conta o estipulado no n.º 4 do artigo 30.º, na medida em que se refere que “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”?
De todo o modo, foi decisão do Parlamento manter as figuras da deserdação e da indignidade sucessória tal como agora se apresentam na lei civil. Ainda assim, tenhamos sempre presente na nossa consciência a gravidade de ambos os crimes e a necessidade que todos temos, enquanto cidadãos, de dar uma resposta que sustente a relevância dos mesmos nos dias de hoje.

- Filipa Menezes

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