“O novo DL n.º 84/2021 de 18 outubro e as lacunas ao nível do tratamento da prova digital: que tutela ao consumidor?” por Paulo Guilherme Faria de Carvalho



INTRODUÇÃO

 

Este trabalho terá como principal enfoque o estudo dos direitos do consumidor na compra de bens, conteúdo e serviços digitais, consagrado no Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro, que transpôs para o ordenamento português as Diretivas 2019/770/CE e 2019/771/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho e cujo principal objetivo passou por contribuir para o funcionamento ideal do mercado interno, bem como a garantia de um nível mais elevado de proteção dos consumidores[1].

A verdade é que fruto da revolução tecnológica e das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (doravante NTIC), os direitos do consumidor têm sofrido alterações drásticas que, por seu turno, levam ao surgimento de novos dilemas. Se, por exemplo, há quarenta anos atrás não eram suscitadas questões concernentes à compra e venda de bens, conteúdos e serviços digitais, a verdade é que, hoje, face a todas as alterações dos meios informáticos, sua disseminação e utilização, não poderemos deixar de mencionar que o Mercado Único Digital é uma realidade e são incontáveis os números de transações comerciais efetuadas diariamente. Mais do que nunca, hoje assiste-se a uma revolução tecnológica nos tradicionais meios de comércio, tendo a própria pandemia COVID-19 sido uma rampa de lançamento para que a compra e venda de bens, cada vez mais, se efetuasse através de um mero “clique”.

Assim, o presente estudo, como certamente as passagens anteriores já revelaram, dedicar-se-á com à temática dos direitos do consumidor na compra de bens de consumo, conteúdos e serviços digitais que, por seu turno, veio revogar o Decreto-Lei que previamente regulava estas matérias, nomeadamente, o Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril.

Iniciaremos com a mais elementar contextualização, nomeadamente, um brevíssimo reflexo sobre a tutela do consumidor, a noção de consumidor e a noção de direito do consumo, enquanto novo ramo jurídico autónomo. Por fim, analisaremos quais as principais alterações trazidas pelo presente Decreto-Lei 84/2021, de 18 de outubro estabelecendo-se, sempre que pertinente, um paralelo com o regime anterior.

 

1.    A Tutela do Consumidor

 

Primeiramente, importa frisar que os direitos dos consumidores encontram-se constitucionalmente consagrados no artigo 60.º da Constituição da República Portuguesa, sendo ainda objeto de regulação na Lei 24/96, de 31 de julho (Lei da Defesa do Consumidor) e, até ao último mês de janeiro de 2022, encontrava-se regulada pelo DL n.º 67/2003, de 08 de abril (Venda de Bens de Consumo e das Garantias a ela Relativas), hoje revogada pelo DL 84/2021, de 18 de outubro.

No entanto, antes de mais, afigura-se necessário definir, em termos sucintos, a noção de consumidor. Nas doutas palavras de LUÍS PINHEIRO, “o consumidor é a pessoa que adquire um bem ou serviço, cujo fim não caia no âmbito de uma atividade económica independente”[2]. Por outras palavras, podemos então afirmar que será consumidor aquele que adquirirá um bem ou serviço para fins particulares, por outras palavras, para fins não profissionais.

É nesta sequência que nasce a tutela do direito do consumo, enquanto novo ramo jurídico autónomo, que vem contemplar inúmeras realidades para as quais o enfoque será, como não poderia deixar de ser, o próprio consumidor, enquanto sujeito jurídico, que será sempre a parte mais vulnerável do contrato, tendo em conta o diferente patamar em que se coloca[3]. A verdade é que, se por um lado, em regra, temos um profissional que tem grande conhecimento das matérias legislativas que regulam a sua atividade económica e que, por isso, se encontra em vantagem, não é menos verdade que, por outro lado, temos um particular “despido” das mínimas noções dos seus direitos e, muitas vezes, sujeito à celebração de contratos com cláusulas contratuais gerais, já predefinidas e que em nada abonam a sua débil posição.

Assim, podemos afirmar que foi com vista à reposição de equilíbrio numa determinada relação contratual que nasceu o Direito do Consumidor.

 

2.    O novo Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro

 

Volvidos quase 20 anos desde a publicação do DL n.º 67/2003, de 08 de abril, foi no passado dia 18 de outubro que foi publicado o novo DL n.º 84/2021 que, por seu turno, veio revogar o precedente DL n.º 67/2003, intitulado de Direitos do Consumidor na Compra e Venda de Bens, Conteúdos e Serviços Digitais.

Foi na sequência da proliferação da dimensão digital no mercado interno que, em 2015, a Comissão Europeia apresentou a Estratégia para o Mercado Único Digital que tinha como principal busílis da questão um aumento do reforço da proteção do consumidor numa mercado cada vez mais prolixo, competitivo e exigente.

No artigo 1.º do presente Decreto-Lei é estabelecido o reforço de direitos dos consumidores na compra e venda de bens de consumo, bem como o regime de proteção dos consumidores nos contratos de fornecimento de conteúdos ou serviços digitais. Neste âmbito assinala-se a preocupação do legislador no alargamento do conceito de “bens de consumo”, tendo a necessidade de incluir as NTIC.

No artigo 5.º e seguintes do Decreto-Lei em analise assinalam-se a preocupação que o legislador teve em enunciar um elenco não taxativo de requisitos objetivos e subjetivos de conformidade que os bens devem obrigatoriamente deter, nomeadamente no que respeita descrição, ao tipo, à quantidade e à qualidade, funcionalidade, compatibilidade, interoperabilidade e as demais características. Já no que respeita aos bens digitais, o legislador estipulou que o profissional deveria ainda assegurar que as atualizações são comunicadas e fornecidas ao consumidor.

Não menos importante e, quiçá, surpreendente, foi o novo regime apresentado quanto à hierarquia para os quatro direitos do consumidor. Posto isto, dúvidas não subsistem que, ao abrigo do DL revogado[4], não eram apresentados quaisquer tipos de hierarquias no que aos direitos do consumidor dizia respeito. Porém, foi no artigo 15.º do DL 84/2021 que o legislador português surpreendeu tudo e todos com uma nova hierarquia de direitos, a saber: a reparação, seguida da substituição do bem, em terceiro lugar o consumidor poderá fazer uso da redução do preço e, por fim, poderá resolver o contrato de consumo. 

Uma outra novidade prendeu-se com a presunção da falta de conformidade à data da entrega dos bens que, agora, apresenta um prazo de 2 anos após entrega dos bens. Portanto, o vendedor responderá perante o consumidor pela falta de conformidade que exista no momento da entrega do bem, presumindo-se, tal falta de conformidade existente no momento da entrega, quando se manifeste num prazo de dois anos a contar do referido momento da entrega, tal como o disposto no art.º 13.º, n.º 1 do diploma aqui em discussão.

Ora, apesar de se responsabilizar o vendedor por qualquer falta de conformidade que se manifeste num prazo de três anos a contar do momento da entrega (art.º 12.º, n.º 1), a presunção de não conformidade apenas aproveita ao consumidor nos dois anos subsequentes à entrega do bem. Terminado o referido prazo, ou seja, no terceiro ano após a entrega do bem, é sobre o comprador que recairá o ónus da prova da existência da falta de conformidade no momento da entrega.

Não podemos deixar de referir que, o presente DL não contempla o prazo de caducidade do direito de ação (ao contrário do DL 67/2003). Ora, salvo douto entendimento por opinião diversa, somos da opinião que tal lacuna deverá ser solucionada com recurso à analogia, devendo considerar-se ser aplicável aos bens móveis, bem como aos bens imóveis, o prazo de dois anos, à semelhança do DL 67/2003[5].

CONCLUSÃO

 

Chegados a este ponto, e até porque a longevidade do presente trabalho não nos permite uma maior extensão, urge a necessidade de concluirmos que, não obstante todas as NTIC, a verdade é que o consumidor não poderá ficar mais  desprotegido face aos perigos do novo advento digital.

Verificou um novo paradigma no âmbito dos contratos de compra e venda, principalmente no decorrer do ano de 2020, tendo por referência a pandemia COVID-19. Ou seja, se há cinco anos atrás pudéssemos prever que, hoje em dia, maior parte do consumo efetuado é realizado através das novas plataformas digitais, com recurso a novos meios de pagamento (também eles digitais), a verdade é que o consumidor encontrar-se-ia muito mais alerta para todos os perigos que podem advir para o mesmo. Por outras palavras, se no âmbito do consumo tradicional o legislador preocupava-se com a regulação da conformidade/desconformidade do próprio bem, a verdade é que no âmbito digital novos problemas poderão advir desde a falta de controlo através dos meios de pagamento, até à entrega do bem.

Foi assim que face às novas necessidades de proteção do consumidor que nasceu o novo DL 84/2021 que, para além de configurar um novo regime hierárquico de direitos de consumidor, revela-se escasso no seio do tratamento da prova digital.

Porém, como não poderia deixar de ser, terminamos enfatizando o óbvio, i.e., que a ciência jurídica não é guarnecida de soluções mágicas que nos habilitem a oferecer soluções definitivas para uma querela bastante recente e em constante mutação, sendo, por isso, esta uma questão em constante debate e cujo fim ainda está em premente discussão…


Por Paulo Guilherme Faria de Carvalho

 

BIBLIOGRAFIA

 

CARVALHO, Jorge Morais, “Direitos do Consumidor na Compra de Bens de Consumo”, Estudos do Instituto de Direito do Consumo, n.º 12, Setembro 2017, pp. 35-73.

CALDAS, Luís Miguel Simão da Silva, “Direito à informação no âmbito do direito do consumo – O caso específico das Cláusulas Contratuais Gerais”, Revista JULGAR, n.º 21, 2013, pp. 203-225.

FALCÃO, David, “Análise à Nova Lei das Garantias – DL 84/2021, de 18 de outubro”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 81, Vol. III/IV, 2021, pp. 493-541.

PINHEIRO, Luís de Lima, “Direito Aplicável aos Contratos com Consumidores” Estudos do Instituto de Direito do Consumo, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 93-106.



[5] A este propósito, FALCÃO, David, op. cit., p. 537.


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